As ciências sociais têm uma grande contribuição a dar ao estudo do Espiritismo. Quem viu isso com mais clareza, segundo nos parece, foi Ernesto Bozzano. O grande discípulo italiano de Herbert Spencer, profundamente ligado ao desenvolvimento dos estudos sociológicos, uma vez atraído para o campo dos estudos espíritas, soube aplicar a este o conhecimento adquirido em outros campos. Seus trabalhos sobre as manifestações supranormais entre os povos selvagens, publicados na revista milanesa “Luce e Ombra”, em 1926, posteriormente reunidos no livro POPOLI PRIMITIVI E MANIFESTAZIONI SUPERNORMALI, representamuma das mais poderosas contribuições para o esclarecimento histórico do problema espírita. Kardec já havia esclarecido que os fatos espíritas são de todos os tempos, uma vez que a mediunidade é uma condição natural da espécie humana. Mas é com Bozzano que temos a primeira penetração espírita no exame antropológico e sociológico do homem primitivo, revelandonos, com base em investigações científicas, as formas préhistóricas do fenômeno mediúnico. Aliás, os estudos de Bozzano levam mais longe, pois revelam também as origens mediúnicas da religião.
Temos assim uma teoria espírita da gênese da crença na sobrevivência, que se apresenta como uma síntese das teorias opostas da teologia e da sociologia. Para maior clareza do nosso estudo, servimonos do esquema que nos fornece o chamado “método cultural”, dos antropólogos ingleses, aplicado por John Murphy, com pleno êxito, em seus estudos sobre as origens e a história das religiões. Método usado na antropologia cultural e no estudo das religiões comparadas, aplicase perfeitamente às necessidades de clareza do nosso estudo. Seu esquema é constituído pelos “horizontes culturais”, dentro dos quais o desenvolvimento humano pode ser analisado na amplitude de cada uma das suas fases. É evidente que não vamos muito além do esquema. Nosso intuito não é o estudo antropológico, nem o das religiões comparadas, mas apenas o esclarecimento do problema espírita. Os “horizontes culturais” são os meios em que se desenvolveram as diferentes fases da evolução humana.
A expressão é metafórica. Chamase, por exemplo, “horizonte primitivo”, o mundo do homem primitivo. A palavra horizonte mostra que devemos encarar esse homem dentro dos limites da nossa visão, de todas as condições do meio físico e social em que ele vivia, na paisagem cultural fechada pelos horizontes do mundo primitivo. Podemos assim examinar cada fase em seu meio, cada homem em seu mundo, compreendendoos melhor.
O estudo de Bozzano, embora anterior a esse método, integrase nele. O “horizonte primitivo” é geralmente dividido em três formas: o primitivo propriamente dito, o anímico e o agrícola. Em nosso esquema, reduzimos as duas primeiras formas a uma única: o “horizonte tribal”, que nos permite abranger numa visão geral o problema mediúnico do homem primitivo, e destacamos a terceira forma, dandolhe autonomia. Isso porque o “horizonte agrícola” tem interesse especial no tocante à mediunidade.
Assim, nosso esquema da fase préhistórica do Espiritismo é o seguinte: horizonte tribal, agrícola, civilizado, profético e espiritual. Até o “horizonte profético”, segundo Murphy. O “horizonte espiritual” é uma formulação nova, exigida pelo Espiritismo. O horizonte tribal caracterizase pelo mediunismo primitivo. Adotamos a palavra mediunismo, criada por Emmanuel para designar a mediunidade em sua expressão natural, pois é evidente que ela corresponde com precisão ao nosso objetivo. Mediunismo são as práticas empíricas da mediunidade. Dessa maneira, temos as formas sucessivas do mediunismo primitivo, do mediunismo oracular e do mediunismo bíblico, só atingindo a mediunidade positiva no horizonte espiritual, que surge com o Espiritismo. Somente com o Espiritismo a mediunidade se define como uma condição natural da espécie humana, recebe a designação precisa de “mediunidade” e passa a ser tratada de maneira racional e científica. Convém deixar bem clara a distinção entre fatos espíritas e doutrina espírita, para compreendermos o que Kardec dizia, ao afirmar que o Espiritismo está presente em todas as fases da história humana. Os fatos espíritas — assim chamados os fenômenos ou as manifestações mediúnicas — são de todos os tempos. As práticas mágicas ou religiosas, baseadas nessas manifestações, constituem o Mediunismo, pois são práticas mediúnicas. A doutrina espírita é uma interpretação racional das manifestações mediúnicas. Doutrina ao mesmo tempo científica, filosófica e religiosa, pois nenhum desses aspectos pode ser esquecido, quando tratamos de fenômenos que se relacionam com a vida do homem na terra e sua sobrevivência após a morte, sua vida e seu destino espiritual. É enorme a confusão feita pelos sociólogos neste assunto, seguindo de maneira desprevenida a confusão proposital feita pelos adversários do Espiritismo.
Os estudos sociológicos do mediunismo referemse sempre ao espiritismo. Entretanto, a palavra Espiritismo, criada por Allan Kardec, em 1857, e por ele bem explicada na introdução de O LIVRO DOS ESPÍRITOS, designa uma doutrina por ele elaborada, com base na análise dos fenômenos mediúnicos e graças aos esclarecimentos que os Espíritos lhe forneceram, a respeito dos problemas da vida e da morte. As práticas do chamado “sincretismo religioso afrobrasileiro”, por exemplo, não são espíritas. O sincretismo religioso é um fenômeno sociológico natural. O Espiritismo é uma doutrina. Defrontamonos, neste ponto, com uma complexidade que também tem dado margem a confusões. Os fatos mediúnicos são fatos espíritas, assim chamados pelo próprio Kardec, mas não são Espiritismo. Porque o Espiritismo se serve dos fatos mediúnicos como de uma matéria prima, para a elaboração de seus princípios, ou como de uma força natural, que aproveita de maneira racional. Exatamente como a hidráulica se serve das quedas d’água ou do curso dos rios para a produção de energia.
Esclarecidos estes pontos; podemos passar à análise dos fenômenos mediúnicos no horizonte tribal.
Extraído do livro O Espírito E O Tempo - Capítulo 1 - Horizonte Tribal e Mediunismo Primitivo
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