Allan Kardec e o Homem - Capítulo 1
Há duas fases na vida de Allan Kardec: — uma anterior à constituição do espiritismo, mais material, conquanto já superior na ordem moral; outra, inteiramente espiritual, em que admitindo e aceitando a doutrina nascente, faz dela a preocupação permanente do resto
de sua vida.
Antes de tudo, é preciso mostrar como o homem em Allan Kardec se completa nas duas fases de sua vida; como a segunda não seria talvez possível sem a primeira.
Nascido em Lyon, na França, em 3 de outubro de 1804, no seio duma família respeitável pelas suas virtudes, ele recebeu dos pais uma educação aprimorada. Pode-se dizer, portanto, que o meio foi o mais propício para o desenvolvimento de suas boas tendências. Todas as qualidades morais, que concorrem para formar o homem de bem, foram logo desabrochando no jovem Hippolyte Rivail e constituíram sempre o fundo de seu caráter.
Quando apareceu depois o grande movimento espírita, de que foi diretor, ele era já um homem experimentado nas lutas da vida, con-
tando já mais de 50 anos, mas sempre guiado por uma consciência reta. O espiritismo não lhe veio trazer a transformação súbita do cará-
ter. Não veio modificá-lo de chofre, dando-lhe imediatamente qualidades que não possuía. Já o encontrou, por assim dizer, formado. Apenas o lapidou. Ele já era um espírito evoluído, com um longo tirocínio de outras existências e outras missões, perfeitamente aparelhado,
portanto, para desempenhar a nova missão que trazia.
Na vida, a coragem nunca lhe faltou. Ele não desanimava nunca. A calma foi sempre uma das feições mais salientes de seu caráter.
Ficando logo arruinado, perdendo toda a sua pequena fortuna no começo da vida, sem sempre exercitando a caridade, e, já casado com a mulher, que foi depois incansável na propaganda de suas ideias, ele consegue por meio de um labor obstinado readquiri-la quase toda no ensino, escrevendo ao mesmo tempo trabalhos didáticos, fazendo traduções de obras estrangeiras ou preparando a escrituração de estabelecimentos comerciais. Ainda assim, não lhe faltava a coragem para fazer benefícios à mocidade pobre, abrindo cursos gratuitos de ciências e línguas. Era essa mesma coragem que ele devia mostrar mais tarde, no momento tempestuoso da formação da doutrina, recebendo sempre com a maior serenidade, sem nunca revidá-los, os ataques mais veementes dos adversários, as injustiças e as ingratidões dos amigos. As cartas anônimas, as traições, os insultos e a difamação sis-
temática, lembra Leymarie, um seu íntimo, no dia de seu passamento, perseguiam esse homem laborioso, esse gênio benfazejo e lhe abriam
moralmente feridas incuráveis. Tudo, porém, ele sabia perdoar.
Nunca fugia às discussões; ao contrário, as desejava sempre, não por espírito de combatividade, pelo gosto da polêmica, mas para elucidar os assuntos. “Nós queremos a luz, venha donde vier”, dizia ele. Nunca procurava impor suas opiniões. Discutia sempre lealmente e, naquilo que constituía uma questão já resolvida pelos espíritos numa concordância geral, os seus esclarecimentos eram mantidos
como uma opinião meramente individual, eram emitidos, apenas, como sua maneira de ver. E sempre estava disposto a renunciá-la desde que ficasse demonstrado que ele estava em erro. Todos os homens podem enganar-se, dizia ele uma vez a Jobard, mas, se há grandeza em reconhecer os erros, há sempre baixeza em perseverar numa opinião que se repute falsa.
Dessa ausência de orgulho provinha necessariamente a tolerância. Assim como não pretendia impor suas opiniões a ninguém, também respeitava as dos outros, inclusive as crenças. Sempre ele praticou o que alegou depois de 1868: — “A tolerância, sendo uma consequência da moral espírita, nos impõe o dever de respeitar todas as crenças. Não se atirando pedras em ninguém, desaparece o pretexto das represálias, ficando os dissidentes com a responsabilidade de suas palavras e de seus atos. Se eu tiver razão, os outros acabarão por pensar como eu, se eu não tiver razão, acabarei por pensar como os outros.” E essa tolerância, sendo um dos vestígios de sua elevação moral, não era somente aplicada nos atos da vida pública, mas também nos da vida privada.
De um humor às vezes alegre, na intimidade ele era um causeur despreocupado, mas brilhante, tendo um talento especial, refere um seu biógrafo, para distrair os amigos e convidados, que os tinha sempre em casa, dando algumas vezes certo encanto às reuniões.
Quem contempla hoje um retrato de Allan Kardec não pode ter a ideia, portanto, do que foi seu caráter, não pode imaginar que naque-
la figura vigorosa, de fisionomia tão austera, aparentando antes uma rigidez exagerada de sentimentos, pouco disposta a perdoar faltas, se
escondia uma alma tão boa, tão simples e tão generosa.
O princípio, enfim, que constitui para o espiritismo o fundamento de sua moral: “Fora da caridade não há salvação”, pode-se garantir, foi sempre a sua bandeira. “Faço o bem quanto o permitem minhas condições, já dizia ele num antigo documento encontrado entre seus papéis, presto os serviços que posso, nunca os pobres foram enxotados de minha, nem tratados com dureza, antes são acolhidos com benevolência” –
“Continuarei a fazer o bem, que me for possível, mesmo aos meus inimigos, porque o ódio não me cega, estender-lhes-ei sempre as mãos para os arrancar aos precipícios, quando para isso se me oferecer ocasião.”
1 Allan Kardec: Œuvres Posthumes, pág. 388.
Extraído do livro Allan Kardec e o Espiritismo - Chrysanto de Brito - Ed ECO
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários serão bem vindos, assuntos imorais serão banidos.