31/01/2025

Jeová, Deus Agrário


Quando estudamos religião comparada, ou história das religiões, o exame do “horizonte agrícola” nos revela a natureza agrária do deus bíblico Iavé ou Jeová. As diferenças fundamentais existentes entre o Deus bíblico dos hebreus e o Deus evangélico dos cristãos decorre da diferença de horizontes. Jeová é um deus mitológico, em fase de transição para o horizonte espiritual. Nasceu, como todos os
deuses agrários, por um processo sincrético. Nele se fundem a experiência concreta da sobrevivência humana, obtida através dos fatos mediúnicos, e a exigência de racionalização do mundo, manifestada nas elaborações mitológicas. Ao mesmo tempo, concepções várias, e até mesmo contraditórias, originadas ao longo da vida tribal e da vida agrícola, também se misturam nessa figura bíblica. Daí as suas contradições, que dão margem a tantas críticas, oriundas da incompreensão do
fenômeno e da ignorância do processo  histórico. Encontramos em Jeová, num
verdadeiro conflito, as características de deus­tribal e deus­ universal, de deus­ familiar e deus­popular, de deus­lar e deus mitológico. Como deus­tribal, Jeová é o guia e o protetor das tribos de Israel, e como deus­universal, pretende estender suas leis a todos os povos. Como deus­familiar, é o clássico “Deus de Abrão, Isaac e
Jacó”, protetor de uma linhagem de pastores, e como deus­popular, é o protetor de todos os descendentes de Abrão. Como deus­lar, é o Espírito que falava a Terá e a Abrão em Ur, à revelia dos deuses­ nacionais dos caldeus, e como deus­ mitológico, é aquele que declara na Bíblia “Eu sou o que sou”, tendo a terra por escabelo de seus pés e o céu  por morada infinita de sua grandeza sobre­humana. O mesmo sincretismo que já estudamos no caso dos deuses egípcios aparece no deus hebraico.

Se a deusa Hator, por exemplo, tinha orelhas de vaca, Jeová ordena matanças, misturando em sua natureza características humanas e divinas. Protege especialmente um povo, uma raça, com ferocidade tribal, e se não exige mais os
antigos sacrifícios humanos, entretanto exige os sacrifícios animais e vegetais. Suas monumentais narinas, embora invisíveis, dilatam­se gulosas, como as de Moloc, aspirando o fumo dos sacrifícios. No Templo de Jerusalém, à maneira do que acontecia com os templos gregos, havia locais especiais para os sacrifícios
sangrentos e os incruentos. Assim como Pitágoras, vegetariano, podia oferecer ao deus Apoio, na ara especial do templo, sacrifícios vegetais, assim também os hebreus podiam escolher a espécie de homenagens que deviam prestar a Jeová.


A história dos sacrifícios ainda está por ser escrita, embora muito já se tenha escrito a respeito. No dia em que a tivermos, na extensão e na profundidade necessárias, veremos uma nova confirmação histórica do desenvolvimento da lei de adoração. Dos sacrifícios humanos passamos aos de animais, destes aos vegetais, e destes aos cilícios, às penitências e aos simples ritos devocionais. Correrá muita água por baixo das pontes, antes que Paulo, apóstolo, possa proclamar, apoiado no ensino espiritual de Jesus, que existe um culto racional, consistente em oferecermos a Deus nosso próprio corpo, como “Hóstia imaculada”. No entanto, Jeová já proclamara: “Misericórdia quero, e não sacrifício”, demonstrando a sua evolução irrevogável para o “horizonte espiritual”, que raiaria mais tarde.

Muitos estudiosos estranham a afirmação espírita de que o Deus bíblico é o mesmo Deus de Jesus. Fazendo uma distinção, que nos parece natural e necessária, entre a Bíblia, como Velho Testamento, e os Evangelhos, corno Novo Testamento, diremos que o Deus bíblico é o mesmo Deus evangélico. As diferenças entre ambos se explicam através da lei de evolução. Se os homens do horizonte agrícola não podiam conceber o Deus­ único senão por uma forma sincrética, uma mistura de Deus e de Homem, os do horizonte espiritual irão concebê­lo de maneira mais pura. Não se trata, porém, de dois Deuses, e sim de um mesmo Deus, visto de duas maneiras. Por trás de todas as formas de Deus, encontra­se uma realidade única, que é o próprio Deus. Isso o que permitia a Jesus dizer­se filho de Jeová e ao mesmo tempo apontar o seu Pai como pai universal, em espírito e verdade. Da mesma maneira, os princípios fundamentais da Bíblia não são negados, mas confirmados pelos Evangelhos. A Lei não é destruída, mas confirmada. Mais de uma vez nos servirá de esclarecimento a afirmação de Paulo: “A lei era o pedagogo, para nos conduzir a Cristo”. A Torá judaica não valia pelas suas normas exteriores e transitórias, circunstanciais, mas pela sua substância. Essa substância é que prevalece, sendo confirmada por Jesus, nos dois mandamentos principais: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. O processo histórico não é contraditório, mas progressivo. Quando não sabemos enxergar as linhas da evolução, em seu  desenvolvimento natural, enxergamos apenas as aparentes contradições das coisas. Assim como a ideia de Deus evolui com os homens, desde a litolatria até as formas mitológicas, e destas à concepção espiritual que hoje aceitamos, assim também os princípios e os postulados bíblicos vão atingir sua verdadeira expressão nos Evangelhos, e por fim sua espiritualização no Espiritismo.

Há um encadeamento perfeito no processo histórico, que não podemos perder de vista. Graças a esse encadeamento os Espíritos puderam dizer a Kardec que o Espiritismo é o restabelecimento do Cristianismo, o que vale dizer: a última fase do desenvolvimento histórico do Cristianismo. Quando sabemos que este originou ­se no solo do Judaísmo, representando um desenvolvimento natural da religião judaica, então compreendemos que o Espiritismo, como queria Kardec e como sustentava Léon Denis, é o ponto mais alto que podemos atingir, até hoje, em nossa evolução religiosa. Jeová, o deus­agrário, transforma­se no Pai evangélico, para chegar à “Inteligência Suprema”, no Espiritismo. Jeová se depura, e com ele se depuram os ritos do seu culto, que por fim se transformam na “adoração em espírito e verdade”, de que falava Jesus.

O horizonte agrícola permanece subjacente em nossa mentalidade moderna. Ainda não conseguimos libertar­nos de suas fórmulas agrárias, de seus deuses e seus cultos, carregados de sacrifícios animais e vegetais. O “horizonte civilizado” desenvolve­se sob os signos agrícolas. Mas virá, por fim, o momento de transição para o “horizonte espiritual”, que assinalará uma fase de transcendência na vida
humana.

Extraído do livro O Espírito E O Tempo - Capítulo II - Horizonte Agrícola: Animismo e Culto dos Ancestrais

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários serão bem vindos, assuntos imorais serão banidos.